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Foto do escritorVanessa Reis

tejiendo el hilo

Eu tenho na boca o gosto do que vem depois.


Ilustração de mulher gorda sentada numa cama, com longos fios azuis descendo por seus olhos, um pacote de lenços de papel ao seu lado, uma poça de água no chão e vários vasos espalhados cheios de água. A legenda, no rodapé, diz: já desaguei, agora posso seguir

Aquela sensação de não estar vivendo o presente porque já estou pronta para as próximas vezes, antecipando os passos, vivendo três linhas adiante, como se isso fosse possível, como se isso fosse normal. É daí a sensação de torpor enquanto tudo acontece. Torpor durante; enquanto as coisas se desenrolam. Quem me cerca me chama de insensível, diz que não tenho coração. Eu acho que tenho coração demais e, por isso mesmo, meu corpo congela e faz os botões de Click serem apertados simultaneamente. Os acontecimentos me atropelam e eu sou a serenidade em pessoa.


Como quando um ladrão tentou entrar aqui em casa fingindo ser meu pai e eu tive de conversar com ele e com a policial, por telefone, ao mesmo tempo em que fingia para o meu irmão caçula que estava tudo bem. Como quando pausei o meu tratamento, aos 10 anos, para comparecer numa atividade escolar e cantar uma música do Caetano, para um auditório lotado, com um sorriso no rosto, retornando para os cuidados médicos minutos depois, sem que ninguém soubesse o motivo (25 anos depois e eles nunca souberam). É como se o meu mundo desabasse, mas eu não sentisse o chão estremecer porque minha mente arrumou um jeito de me colocar em algum momento no futuro. E daí eu sigo. Sobrevivo. Dou mais um passo, perco mais um pedaço, me costuro com o que sobra, diminuo para crescer.


Mas quando o tempo passa, quando o sangue esfria, despois de quatro meses ou dez anos, o mar calmo dá lugar a tsunamis e todo o lixo é lançado na praia, apagando as minhas pegadas na areia, me fazendo escoar pelos olhos todo o sal que o torpor roubou de mim; me fazendo sentir tanto, mas tanto, que fica difícil não ceder. E eu choro copiosamente e invento mais um medo para adicionar à minha lista de medos mortais. Mas não são medos da morte ou das dez pragas do Egito, são medos idiotas, sem propósito, que só fazem sentido pra mim, que aparecem justamente pra fazer sentido e se encaixar como uma pecinha de tetris na bagunça organizada que eu sou.


São uns medos tão bestas, mas tão bestas, como sempre achar que o chão do banheiro vai ceder enquanto eu estiver tomando banho (principalmente ao lavar os cabelos!) ou que a panela de pressão vai explodir na minha cara todas as vezes que eu passar pela cozinha (mesmo que ela esteja desligada!) ou que todos os palhaços do mundo sabem meu nome completo e me odeiam (nada mais justifica eu sempre ganhar ingresso ou cartão de circo na cidade, só pode ser um complô!). Eu sou medrosa, mas nunca corri de médico, por exemplo: passar 24 horas internada fazendo exames? Vamos. Precisa tomar o pior remédio do mundo? Tamo aí. Mas os medos bestas… ah, esses me enlouquecem! E me consomem!


Eu acho que a vida me calibrou com esses medos bobos que é pra trazer uma noção de normalidade para, de quem, ela já tirou muito. Eu precisei amadurecer muito cedo, eu aprendi a sorrir quando tudo o que eu era, era um grito de desespero e um rio de lágrimas. Eu precisei entender que tudo de ruim que os outros estavam impondo a mim, era para o meu bem, para me ajudar a melhorar. Então a minha cabeça inventou um jeito de me fazer focar no absurdo, de me fazer mergulhar tão fundo nesses meus medos bobos que os de verdade, aqueles gigantescos, nem fazem cócegas.


Assim, a minha cabeça me leva por lugares inimagináveis enquanto cortinas de fumaça entorpecem as situações caóticas e eu pareço com a personificação da serenidade… mesmo quando não o sou, principalmente por não o ser.

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