“O traço mais universal que todos nós temos é possuir um corpo e todos nós, sem exceções, estamos sujeitos às fragilidade desse corpo.” (p. 132)
Eu nasci com uma deficiência congênita, invisível. Enquanto crescia assisti às mudanças do meu corpo: escoliose, hiperlordose, anquilose de quadril, dor crônica; bengalas, muletas, andadores, cadeira de rodas. Como você pôde perceber, viver, é sim, uma gradação de transformações. E não é porque eu tenho uma deficiência, mas também é porque tenho uma deficiência.
Recentemente, li Poderosa e Sobre Rodas uma perspectiva do meu corpo resiliente, comum e com deficiência, da Dr. Rebekah Taussig, e todo o processo de leitura foi uma sucessão de ‘uau’ e alguns incômodos e abraços na alma e grifos e quotes enviados para as amigas que também pudessem sentir os abraços e se incomodar e suspirar os ‘uau’ comigo. Ainda que eu não me visse em todas as páginas, porque, como você precisa saber com antecedência, o livro é repleto das histórias pessoais dela, é importante frisar que experiências de vida, ainda que não sejam individuais, sempre parte do um. Eu? Revisitei memórias. Me senti incomodada com a minha própria exaustão. Sibilei alguns “me deixe”. Me senti conectar com partes de mim que nem sabia existir. Pensei um bocadinho de "cresça". Me enxerguei em diversos capítulos. Muitos dele.
“Nesse momento em que buscamos narrativas que testam as fronteiras da identidade e reimaginam expectativas em relação a gênero, raça e sexualidade, a deficiência está pronta para contribuir com uma conversa que desafia velhos paradigmas e faz novas perguntas a respeito do que significa – do que poderia significar – ser humano. (...) Queremos entrelaçar essas histórias à coleção, queremos considerar pessoas com deficiência como dignas de suas próprias histórias comuns, porque sem elas somos menos robustos, menos flexíveis e menos equipados para a viagem que já estamos fazendo. (...) representatividade é nada menos que tudo.” (p. 118 e 119)
Primeiro, as primeiras coisas. Desde o prefácio da Flávia Cintra ao término da leitura e às trocas com a Isa, o anúncio que anuncia o “museu de grandes novidades”: as experiência das pessoas com deficiência tentando viver numa sociedade que prefere fingir que nós não estamos aqui, ali ou acolá é universal. E aqui eu gostaria de inserir a minha primeira narrativa particular: meu primeiro emprego.
No último no de faculdade eu precisei usar uma cadeira de rodas por um tempo maior que o esperado. Meu quadril estava muito mais travado, muletas não eram mais tão seguras pra mim e eu estava apresentando um cansaço muito grande ao usar o andador, principalmente ao fazer longas distâncias (leia-se atravessar um corredor longo ou ir até a esquina da rua). Meu primeiro e único pensamento foi: concurso público. Se eu sou tão inteligente como eles dizem, eu vou garantir a minha estabilidade, pensei. Melhor, eu vou ter menos dores de cabeça com acessibilidade ou com o acesso aos meus direitos por estar inserida no setor público, repeti para mim mesma. Esse foi o pensamento da Vanessa de 2011. E eu realmente acreditava nisso. Até que o primeiro item da lista de desejos aconteceu: pouco tempo depois, fui chamada para tomar posse no concurso que fiz. Estava radiante... até ouvir da pessoa-que-me-recebeu-assim-que-sai-do-RH que eu não era quem ela esperava.
“Nós precisamos mudar nosso mundo para que caibam mais pessoas.” (p. 75)
Com essas palavras, ela fez questão que eu me certificasse de que, como vários outros, aquele espaço não havia sido feito pra mim. Ela fez questão de delimitar uma linha entre nós: uma linha que declarava de qual lado eu estava. Mal sabia ela que eu havia aprendido com o Menino Maluquinho que, se todo lado tem seu lado, eu sou meu próprio lado! Passada a recepção tão calorosa quanto despejar sal numa ferida, a fase de testes começou: fui escolhida como responsável por um projeto grande, ainda na primeira semana. Eu me sentia avaliada a cada respiração que dava, era como se ela esperasse o meu fracasso para provar um ponto. Ao menos era assim que eu me sentia. Como se eu fosse a minha deficiência; como se ela estivesse à vista demais. Tarde demais, pensei. Ocupar aquele espaço foi uma das melhores coisas que aconteceu comigo... se eu desconsiderar todas as infecções urinárias e a perda de peso que tive nos três primeiros anos como servidora pública, claro.
“É revoltante pensar que a mesma sociedade que produz e mantém todos os tipos de barreiras nos aplaude por superar as dificuldades que ela própria impõe. Nada é mais cruel e covarde. Há 32 anos eu passo muito tempo sem beber água fora de casa porque nunca sei quando e onde encontrarei um banheiro acessível.” (p. 14)
O banheiro era um pequeno retângulo que apenas cabia a minha cadeira. Literalmente. Eu precisava pedir que alguém me colocasse lá dentro e trancasse a porta atrás de mim, já que a cadeira não conseguia se mover no espaço. Ao terminar, precisava chamar a pessoa de volta (se ela se afastasse da porta, boa sorte em ficar chamando até que alguém fosse ao meu resgate. Sim, isso acontecia mais do que eu gostaria) para me tirar de lá. No começo, a gente nunca imagina que fazer isso todos os dias vai se tornando cada vez pior (e não falo por conta das outras pessoas! Felizmente, todos os demais servidores do meu local de trabalho [um beijo para todas as Coordenadoras que já tive e a todas as minhas ex-colegas] sempre foram queridíssimos!), apesar das gentilezas diárias oferecidas. Porque existem dias que a gente não quer gentileza, a gente só quer um pouquinho de acessibilidade.
Então eu passei a beber cada vez menos água porque isso me fazia ir ao banheiro apenas quando eu chegava a casa (leia-se, depois das 14h). Almoçar por lá foi uma ideia com validade de menos de uma semana: além de ter degrau para a copa, eu não consigo ficar sem escovar os dentes depois de comer. Caso você não se lembre, era impossível usar a pia do banheiro, eu vivia com um pote de álcool gel (muito antes de ele se torar item indispensável em todos os lugares) porque era assim que conseguia manter as mãos limpas. E assim eu fui empilhando caixas de cefalexina e voltando a usar 34.
“(...) inacessibilidade (...) Não era um problema chato a ser resolvido. Era um problema que define e determina.” (p. 215)
Preciso dizer que todas as minhas colegas (de sala, de outros setores, dos serviços gerais) constantemente perguntavam se eu não queria ir ao banheiro. Se eu não estava bebendo água de menos. Ela sempre foram muito solícitas e atenciosas. Mas eu me sentia incomodando (algo que passou depois que o fator intimidade aconteceu; depois que fiz amigos e me senti parte dali; que tomei posse, realmente, do meu lugar). Eu me sentia irritada em ter não poder usar o banheiro como todas as pessoas. E isso se tornou um lembrete visível e diário de que eu deveria reduzir não a minha ingestão de líquidos, mas o meu silêncio quanto a isso. (Caso você queira saber, eu voltei a pedir ajuda para ir ao banheiro, eu amo água na mesma proporção que odeio tomar comprimido, não dava mais para viver com infecção urinária! Também, passei a falar sobre a falta de acessibilidade sempre que o Prefeito ia até lá e, depois de quase 4 anos, mudaram meu Setor para uma casa antiga com banheiro largo que, depois de alguns pequenos ajustes na porta e da retirada da pia para a parte externa do cômodo, ficou acessível; mudou minha vida pra 200% melhor).
Lição da minha primeira narrativa: banheiro é uma das coisas mais importantes para uma PCD, é por conta dele que a gente demora mais para fechar uma casa num Airbnb ou para reservar um quarto de hotel. É pela imprevisibilidade de um banheiro acessível que eu preciso programar todas as minhas saídas, inclusive a ingestão de líquidos durante esse tempo. Banheiro, infelizmente, ainda é artigo de luxo para pessoas como eu.
“Esse futuro não vai surgir do nada; nós precisamos cria-lo – pouco a pouco – ao praticarmos ouvir, cuidar de todos os corpos, respeitá-los. Por favor. Vamos criar esse mundo uns para os outros.” (p. 235)
O passar de páginas me fez sentir numa conversa com amiga muito especial. O sentimento principal foi o de, finalmente, ser compreendida. Sabe quando a gente começa a conhecer uma pessoa e vários “eu também!!” vão sendo ditos ao longo da conversa? É isso. E eu preciso dizer que, isso, tem a ver comigo e o tempo que levei para, apesar de ter nascido com deficiência, ter me entendido como uma pessoa com deficiência. Vou além. Tem a ver com o tempo que levei para me sentir parte de uma comunidade PCD (talvez porque eu cresci longe de pessoas parecidas comigo ou porque eu era a única PCD nos espaços que frequentava?) Uso cadeira de rodas há quase 10 anos e só ano passado eu comecei a me sentir parte de algo coletivo, em se tratando da deficiência (talvez seja essa a raiz de alguns questionamentos meus com o livro? Talvez eu tenha convivido tempo demais numa redoma que me fez acreditar que eu pertencia a lugares que, quando passei a enxergar mais de perto, mais fora de mim, vi que não pertenço?). E o fato de escrever histórias sobre mulheres com deficiência, principalmente, me aproximou de outras mulheres com deficiência: graças a Deus. E aqui eu gostaria de inserir a minha segunda narrativa particular: a síndrome de Pedro Álvares Cabral (contém ironia).
Se ser a primeira é desafiador, imagina ser a única. Agora imagina ser a única sem ter alguém minimamente parecido com você pra dividir algumas questões que só sendo minimamente parecido com você será possível compreender totalmente? Por vezes, me senti em observação. Porque, na maioria das vezes, ou queriam me fazer de porta-voz de todas as PCD ou queriam usar a minha imagem para promover uma inclusão inexistente.
“Nós ignoramos as perspectivas, as histórias e as vozes das pessoas com deficiência por tanto tempo que suas verdadeiras necessidades, seus sentimentos e suas experiências são dificilmente reconhecidos e muito menos compreendidos.” (p. 188)
O ano era 2017 e o fatídico setembro verde estava chegando. Qual a ideia genial que algumas pessoas no trabalho tiveram? Vamos colocar Vanessa num outdoor sobre esse dia tão importante. Eles não garantiam que eu pudesse usar o banheiro com independência, eles marcavam eventos coletivos em lugares com escadas, mas ficaria bonito pra propaganda... que nunca existiu, porque eu continuei recusando qualquer convite nesse sentido, principalmente quando falta tanto pra se ter o mínimo de acesso, que dirá de inclusão (porque a existência do primeiro, nem de longe, garante a existência do segundo: de forma bem simples, a acessibilidade me deixa entrar num lugar [objetivamente], a inclusão me faz pertencer [exercer a subjetividade]). Consigo contar nos dedos quantas vezes, em conversas de corredor ou na presença de completos estranhos, me perguntarem a) como eu tomo banho; b) por que eu sou vaidosa e uso batons/esmaltes; c) se não tenho vergonha de usar esse tipo de roupa por causa das deformidades do meu tronco (decote e saia curta parece que não é permitido, perdi esse memorando); d) pra que eu quero uma sandália de salto (ou alguns sapatos). Há também o time do “você já namorou?” x “não pode falar disso na frente dela porque ela é inocente”.
“Eu não estava aqui para me apaixonar, me tornar mãe, fechar um acordo, resolver o caso, oferecer sex appeal, salvar a donzela ou ser presidente. Se eu me esquecesse do meu papel – mesmo que só por um momento – ou tentasse fazer um teste para outra posição na história, sempre havia outro personagem ali para me cutucar e me mandar de volta para aquele pequeno pedaço de fita adesiva no palco que marcava o meu lugar.” (p. 101)
Há aqueles (muitos!) que falam comigo com voz de bebê. E que tocam o tempo inteiro. E que me seguem com o olhar o tempo inteiro. E que empurram a minha cadeira sem avisar (e se irritam quando eu explico por que isso é errado). E que se recusam a serem atendidos por mim. E que subentendem que a minha escrita só é válida se for sobre deficiência ou tiver protagonista PCD. E que insistem em entrar comigo em algumas consultas mesmo quando eu digo que não quero. E que repetem o tempo inteiro que “Deus vai me curar” (será que é tão difícil assim perceber que Deus é perfeito e que, quando Ele me fez, Ele queria que eu fosse exatamente como eu sou?).
Lição da minha segunda narrativa: não quero nem vou olhar o mundo com a mesma desesperança, com a mesma descrença que ele me olha. Se eu quero jogo de espelhos, que o espelho seja o meu.
“O objeto dos estudos da deficiência não é a pessoa que usa cadeira de rodas ou a pessoa surda, mas o conjunto de processos sociais, históricos, econômicos e culturais que regulam e controlam a forma como pensamos sobre o corpo e através dele.” (p. 89)
Crescer é doloroso, em diversos aspectos, para todos nós. Mas crescer sendo parte de um grupo minoritário é sentir um tipo único de dor (a física, mas também as de outras naturezas) que oscila, se transforma, mas nunca vai embora de verdade. É o se entender diferente pelo olhar do outro (vide todos os exemplos que elenquei acima), é o se perceber diferente por todas as preocupações e inseguranças totalmente exclusivas para seu corpo, por exemplo. E aqui eu gostaria de inserir a minha terceira narrativa particular: tudo e todas as coisas ao mesmo tempo.
Então ler Rebekah falar sobre “ser a única pessoa visivelmente com deficiência na sala” me faz pensar em todos os cantos acessíveis aos quais fui colocada durante eventos e visitas, em que me fizeram parecer mais um item da mobília que uma pessoa convidada e esperada; sobre “o que esperar quando pegar um Uber” me fez empilhar as vezes em que me perguntaram se minha cadeira também iria, em que questionaram se eu poderia ir sozinha ou, pior, que eu desejei fingir que não queria sair apenas para não fazer o grupo que estivesse comigo sofrer vários cancelamentos e amargar uma longa espera até que alguém estivesse disposto a aceitar a corrida com a observação sobre um bagageiro grande para caber uma cadeira de rodas; sobre “a busca pelo banheiro minimamente aceitável numa casa que coubesse no orçamento” me faz pensar por que tudo é tão caro pra gente ou como eu sofro por antecipação para passar muitos dias fora da minha casa porque lavar o cabelo sem todas as minhas facilidades diárias é um pesadelo!
“Quando ignoramos ou minimizamos nossas vulnerabilidades, nossas partes mais frágeis, nossas limitações físicas inerentemente humanas, eu me pergunto: estamos apenas reforçando as regras que o patriarcado escreveu? (...) Que nuances e descobertas estamos perdendo com nossa seletividade?” (p. 175)
Quando Rebekah fala sobre seus receios de “encontrar um casa para morar” ou “morar sozinha”, me lembra todas as vezes em que fico só em casa e que parece o fim do mundo para terceiros porque, na cabeça deles, ter algumas limitações me fazem alguém limitada; ou em todas as citações sobre “ter dias em que não se tem energia para falar sobre todo o capacitismo que a gente enfrenta”, que me recordam de todas as vezes que quis reclamar das mesas de café da manhã de hotel, algumas altas demais, que não permitem que eu enxergue todas as opções e fique à espera de alguém me resumir o que tem para comer (felizmente, agora tiramos fotos!) ou dos balcões de atendimento que deixam meu pescoço doendo de tanto olhar pra cima ou da escola que recebia minha mensalidade como a de todos os demais, mas nunca pensou em mudar nenhum detalhe estrutural para que eu tivesse acesso como todos os demais ou das lojas que preferem enviar itens selecionados aqui para casa ao invés de pensarem em acessibilidade em seus espaços ou dos convites para palestras, saraus, rodas de conversa em lugares sem acessibilidade em que tentam transformar a incompetência do responsável pelo evento em um problema que eu tenha de resolver... Foi triste perceber que só muda o nome do lugar, já que tudo isso acontece o tempo inteiro em todo canto. Mas foi revigorante ler aquelas palavras porque, ao que parece, eram elas que eu precisava também.
“Um grupo é marginalizado porque a sociedade o marginaliza. A sociedade também tem o poder de mudar isso.” (p. 82)
Poderosa e Sobre Rodas foi um afago e um pegar na mão. Daquele jeitinho que me lembra que não sou a primeira nem serei a única (é óbvio, mas há dias que o óbvio parece se esconder entre as prateleiras dos sentimentos) com questões e conflitos e ideias e dores, mas que reforça em mim a certeza de que todas as perguntas que faço e todos os caminhos que atravesso e em todos os lugares que chego não estou só: eu sou muitas porque as respostas que recebo não são somente pra mim; porque o meu lugar no mundo que vislumbro e as formas de existir nele não serão exclusivos pra mim (ainda bem!).
Lição da minha terceira (e última, finalmente!) narrativa: Deus me livre de não continuar tecendo fios invisíveis de afeto, de não continuar acreditando no poder da rede; de desacreditar das pessoas.
Até ao nascer, a gente já nasce sendo parte de outro alguém, a gente já nasce coletivo. E enquanto cresce, a gente se constrói nas relações humanas, no convívio, na troca. Aprendi a respeitar meu tempo, a acolher minhas vulnerabilidades e apreciar minhas potências; aprendi a pedir ajuda e, principalmente, a recebê-la (não, essas coisas não são as mesmas coisas). Aprendi a não me privar de fazer o que quero porque os espaços não estão prontos pra mim: eu já estou no mundo, ele que se ajeite! E muito disso é pela família e os amigos que tenho. É pela construção diária de sentimentos e quereres e cuidado. É a colaboração pra que existam nós.
“Colaboração coletiva nos leva muito mais longe do que buscas individuais.” (p. 249)
A todos que já me julgaram café-com-leite: paciência. Aos que ainda me julgam: boa sorte.
**Todos os trechos foram retirados do livro Poderosa e Sobre Rodas: uma perspectiva do meu corpo resiliente, comum e com deficiência (título original Sitting Pretty: the view from my ordinary resiliente disabled body), de Rebekah Taussig. Tradução de Isadora Goldberg Sinay. 1ª ed. São Paulo: Buzz Editora, 2024.
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