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Foto do escritorVanessa Reis

parece que a verdade vive em segredo


Escombro de uma construção

Eu nunca tive medo da morte. Sempre a imaginei como um momento tranquilo demais, sempre me perceberam muito madura quanto a isso. Mesmo quando eu tinha nove anos e sofria com um sério problema intestinal e ouvi mais de uma vez da equipe médica que acompanhava meu caso que “quase morri”. Belchior tinha razão mesmo, Emicida. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.” E aí reside a pegadinha. Não, Belchior tem razão mesmo e essa consiste na razão de ser, mas é assunto para outro momento, minha mente está correndo contra o tempo para despejar no papel tudo o que a tem agoniado. Desculpa, você, por estar lendo isso.


Como eu ia dizendo, a pegadinha. A cada ano que passa, a cada aniversário dos meus pais, eu fico mais apreensiva. Imaginando como seria horrível a minha vida sem eles. E a imaginação tira mais um punhado de terra. Imagino viver sem os bons amigos que tenho, sem as relações que fiz. É como aquela frase do Ziraldo, em A Menina Nina, que me faz chorar todas as vezes: como é que eu vou crescer sem você me ver crescer? Aprendi que viver é aprender a crescer mesmo depois de grande, mas ainda não fui aprovada nessa matéria.


A frase do Ziraldo, certo. Ela me faz perceber que sou muito dependente das relações afetivas. Eu sei estar só. E eu gosto. Mas não sempre. Porque eu gosto de estar acompanhada. Eu gosto das vozes ao longe, seja de panelas batendo enquanto se ouve música no YouTube, seja de áudios sendo gravados no Zap Efron contando alguma piada, seja de estudos em japonês vindos do quarto lá da frente. Eu gosto de saber que há mais alguém comigo e nesse momento percebo que seria um tipo de Anahí perguntando o tempo inteiro "¿estan ahí?" Porque gosto que estejam. Gosto de saber que estão.


Às vezes penso em deixar tudo organizado para caso eu já não esteja. E esse tipo de pensamento surge em dias como hoje. Segundas-feiras em que estive sem energia elétrica durante algumas horas e pouquíssima bateria no celular? Não. Dias de pico de incômodos. Dias em que a gente conhece cada centímetro de músculo e articulação do corpo humano porque tudo incomoda, até o que nem se sabia da existência. Dias em que, sem motivo aparente, o corpo todo coça e a dermatite ataca. Será mesmo sem motivo? Será mesmo que pensar em todos os 'sim' que preciso dar aos 'não' que minha vida me impõe não seja motivo suficiente? Questões...


Mas voltando... Será que é por isso que eu tenho a mania de etiquetar tudo? E de fazer questão de compartimentar a maioria das coisas em nichos específicos para não dar trabalho a ninguém na hora de procurar? Será que é antecipando minhas ausências? Pode ser. Será que é facilitando no futuro lidar de minhas dependências dentro das independências diárias? Pode ser. Esse é o único questionário em que não existem respostas erradas. Mas nem tudo são acertos. Porque é a vida.


E uma vida sobre quase já estar vivendo o depois: não tenho certeza se estou; mas talvez esteja. Talvez o futuro esteja sendo costurado ao meu agora. Outra coisa sobre o que também não tenho certeza. Pra quem se acostumou a ter um 'não' para cada 'sim', a possibilidade de futuro assusta. Não porque ele é impreciso, mas porque ele é considerável. Considerado. Quem diria! (não os médicos quando eu tinha nove anos, eles não diriam mesmo!!). Porque o futuro existe. E se ele existe, é porque eu existo.


Estou sentada e estou cheia de dores: dentro e fora. Continuaria cheia de dores se estivesse deitada. Ou se conseguisse ficar de pé. Tenho uma deficiência que se vê e que não se vê. Tenho prioridade dupla? Não. Tenho atestados duplos? Não. Tenho rejeições duplas. "Mas se existem rejeições é porque você teve de tentar antes...". Verdade. Mas eu quis? Eu tive escolha? Eu pude não fazer ou sentir ou vivenciar ou enfrentar? Spoiler: a resposta é a mesma para todas as perguntas anteriores. Talvez ser essa brincadeira de "ser a primeira" seja legal apenas para a Anitta. Talvez eu que não saiba brincar.


São muitas perguntas sobre muitas coisas que eu não sei. Mas e as minhas perguntas? Pra quem eu levo? Continuo não sabendo. E odeio ter de descobrir sozinha porque isso implica dizer que, se eu falhar, eu perco todo o investimento financeiro, de tempo e de esforço: eu perco um pedacinho de esperança. Mas a fila anda (não dessa forma que você está pensando) e eu não posso estacionar se eu quiser continuar existindo. Então eu vou porque existem muitos depois de mim que também precisam ir.


E talvez seja por isso que eu me sinta um carro em demonstração. Pouco rodado que é para não quebrar. Conservado na aparência. Polido, organizado, mas nunca levado para casa. Basta dar uma olhadinha pra saber como funciona. Uma voltinha e você já sabe como lidar com os outros. "Esse é pra demonstração, por favor, respeite as regras!". Ah, os quereres... os meus? Tsc...


Quem não teve possibilidade de futuro, parece não ser possível vivenciar o tempo de plantar, regar e colher. A ordem natural das coisas não se aplica a mim. Existe ordem natural das coisas? Outro dia, novamente. Tudo o que me pedem é um jardim pronto. Me pedem margaridas e tulipas e me arrancam as raízes em carne viva para levar de recordação esse souvenir vivo sobre como fazer no jardim no apesar de. Lembre-se, eu sou um carro em demonstração. Mas e o tanto que chorei para regar esse solo? E o tanto que tive de crescer para plantar nesse solo? E o tanto que esperei para colher desse solo? Eles não ligam para o tempo de Eclesiastes.


Ninguém quer arar a terra e errar a dosagem de fertilizante, e trocar de adubo e cavar vários lugares até achar o local correto e que seja melhor pra receber o sol: eles querem terrenos férteis e prontos para o plantio. Mas eu não sou uma filial de mudas. E mesmo assim continuam arrancando pedaços. E levando para casa souvenirs de mim. E eu ia deixando. Porque qualquer coisa é melhor que coisa nenhuma. Não. Não mais. Qualquer coisa também é coisa nenhuma. Hoje eu sei.


Julia Cameron me mandou confiar no processo. Deus me diz para não perder a fé. Eu me sinto feliz por, entre as duas coisas, compreender as pequenas agonias da vida adulta. Já dizia a poeta: nada se parece mais com um prédio em ruínas do que um prédio em construção.

 

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